Realizar trabalhos de arte a base das experiências existenciais, como transpor as imensidões dolorosas das noites urinadas. Fingir figuras concebidas do desejo e da amargura. Instigações obscurecidas pela lua. Não acredito na pintura agradável. Há algum tempo meu trabalho é como um lugar em que não se pode viver. Uma pintura inóspita e ao mesmo tempo infectada de frinchas para deixar passar as forças e os ratos. Cada vez mais ermo, vou minando a mesma terra carregada de rastros e indícios ásperos dentro de mim, para que as imagens sejam vislumbradas não apenas como um invólucro remoto de tristezas, mas também como excrementos de nosso tempo. Voltar a ser criança ou para um hospital psiquiátrico, tanto faz se meu estômago dói. Ainda não matem os porcos. A pintura precisa estar escarpada no ponto mais afastado desse curral sinistro.

Nelson Magalhães Filho

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Nelson Magalhães Filho. ANJOS BALDIOS, 2004, mista s/papel craft, 100X80 cm

AVÔ
Numa noite, assoviada poeira de estrelas
meu coração vazio insistia na rua.
Vovô naquela vez não escrevia poemas
mas vadiava todo prateado pelos becos
e arrancava luzes com as unhas inquietas
das verdes paredes descascadas pela lua
(a noite inteira chamando chamando).
Às vezes nos entreolhávamos numa esquina,
eu era príncipe-felino
ele tinha asas
que rasgavam o paletó mais negro
que a flor da morte.
Sacudia os ombros meio esquisito,
ainda não dorme, dizia-me
deixe-me levá-lo para casa
ainda é uma criança
é cedo para o delírio sutil.
Seus cabelos lambidos como os de Gullar
um sapato vermelho
vovô meio dada
pendurava um brinco discreto na orelha esquerda
e na outra um vagalume
costurado com uma linha mais fina
que o silêncio.
O caminho era prisioneiro dos meus dedos magros
(frestas cheias de calos e suor).
Uma agonia
um hálito embebido de coisas noturnas,velórios
príncipe dos gatos bebendo nos bares.
Vovô sem barba, olhos pretamente abertos
nariz comprido.
Nossos corações vazios rolavam ladeiras
bebiam seixos no rio
(ontem não vi Bartira e o sapo ao luar).
Naquele tempo ao céu piscava devagarinho
nos velhos sobrados,
e capturávamos borboletas negras outras azuis
pelos postes altas horas
recitando Allen Ginsberg, Rita Lee
sem fadiga, sem dormir dias e dias,
não fazia tanto frio.
(Eu tinha mandado uma carta para Silvana).
Subíamos nos telhados
roubando o sonho que esqueciam pela manhã.
Quando chegasse em casa
ia ter legião estrangeira ou a hora da estrela,
cartilhas de comunismo...
Naquele tempo eu signo de cachorro
outra vez adormecer todo queimado.
Ontem amei Celuta, ai flor!
Cel tem cheiro de terra molhada
e assim caminha levada...
Baratas chovidas pelo chão, I. disse:
você tá sonso, meio crisântemo.
Chove pouquinho. Dragão, Bach,
tenho desenhado bastante.
Som de Caetano, muito (dentro do peito
azulado de araçás). Canto sem parar.
Carinho de vampiro em I. Se eu te queimo...
Outro sonho: tava eu e...
uma pontada de noite ameaçou minha cara,
uma noite de van Gogh
carruagem espelhada cheia de folhas de mármore
como cisco avermelhado no olho
começava a chorar...
Vovô, e vovô sumia, e eu ficava triste
aguentando as rajadas cruas das lamparinas
amarelas, também dançarinas amarelas
batiam palmas de casa em casa
passeavam com argolas nos dentes, ossos doendo.
Com uma tesoura amolada no realejo
recortei um pouco daquela águae banhei a tarântula
feito farinha num peixe teórico.
Vovô sozinho atravessava muros e jardins
muito leve flutuava perdido pela cidade
gritava meu nome, acorde, toque
curto-circuito nas redes tortas e eu chorava
chorava. Seus olhos ainda trincavam-se.

Nelson Magalhães Filho