Realizar trabalhos de arte a base das experiências existenciais, como transpor as imensidões dolorosas das noites urinadas. Fingir figuras concebidas do desejo e da amargura. Instigações obscurecidas pela lua. Não acredito na pintura agradável. Há algum tempo meu trabalho é como um lugar em que não se pode viver. Uma pintura inóspita e ao mesmo tempo infectada de frinchas para deixar passar as forças e os ratos. Cada vez mais ermo, vou minando a mesma terra carregada de rastros e indícios ásperos dentro de mim, para que as imagens sejam vislumbradas não apenas como um invólucro remoto de tristezas, mas também como excrementos de nosso tempo. Voltar a ser criança ou para um hospital psiquiátrico, tanto faz se meu estômago dói. Ainda não matem os porcos. A pintura precisa estar escarpada no ponto mais afastado desse curral sinistro.

Nelson Magalhães Filho

sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Nelson Magalhães Filho. Mista s/papel, 70X50 cm



AÇOUGUE
Sala branca semelhante a um centro cirúrgico, alguns aparelhos médicos. Há três macas ginecológicas. Um homem com sobretudo branco fala para um casal vestido a rigor. Há um homem e uma mulher deitados nas macas com roupas íntimas e uma auxiliar ajudando-o com o projetor de slides : “ trabalho sempre buscando a perfeição, sou de formação cartesiana e acho que esse é o segredo do meu sucesso. (passa um slide com um plano cartesiano). É verdade que o perfeito para o imperfeito é o imperfeito, se é que vocês me entendem. Vejam essa mulher (slide de uma mulher obesa com os peitos nus e tarja preta no rosto) ela procurou nosso serviço pois desejava que eu abrisse um orifício artificial em sua barriga para satisfazer um amante, pois seus orifícios naturais tinham perdido o gosto, ela me disse. Expliquei que poderia ter problemas de escape de fezes, infecções etc, mas ela insistiu, foi operada e à partir da segunda revisão foi liberada para utilizar o orifício. Teve uma religiosa que pediu para transplantar seu clitóris para a axila, para então poder gozar sem pecar...

Homem vestido a rigor: interessante, mas o senhor recomendou-a algum desodorante especial?

Dr. : não, apenas pedi que semanalmente passasse na axila algum tipo de creme ginecológico.Mulher vestida a rigor: onde foi sua formação Dr., digo, onde concluiu os estudos?

Dr. : estudei na Europa, mas os experimentos começaram em aldeias sudanesas.

Homem: Quando surgiu o interesse pela pornologia?

Dr.: olha, eu aqui quem faço as perguntas...

Mulher: por favor, doutor, responda. Ajudaria-nos a ter mais segurança.

Dr.: A pornologia é uma ciência antiga, há registros de múmias egípcias encontradas com pênis adornados, alongados e até mesmo banhados em ouro.

Homem: interessante.

Dr. : sou de uma família tradicional, não tão rica, mas tradicional e vocês sabem que famílias tradicionais que estão empobrecendo se tornam extremamente pornográficas.

Mulher: sério!?

Dr.: Nas festas de família realizávamos orgias maravilhosas, lembro de quando éramos crianças uma tia-avó besuntava seus seios com brigadeiro que nós lambíamos até nos saciarmos...

Homem: eram seios grandes?

Dr.: (se empolgando) enormes...

Mulher: (quebrando a empolgação) crianças não deveriam comer tanto doce, não faz bem a saúde.

Dr.: Os adultos também transbordavam orgia, nas partidas de pôquer eles apostavam penetrações, parceiros, roçadas.

Homem: já jogamos pôquer apostando posições...

Mulher: (constrangida) mas, isso já faz tempo.

Dr.: ora, ora, então vocês tem afinidade com o tema...

Homem: bem, estamos aqui, não estamos.

Dr.: digamos que querem tratar do que os leigos chamam putaria.

Mulher: pode-se dizer que sim.

Dr.: mas antes de dizerem o que realmente querem, deixe-me apresentar-lhes a equipe: essa é minha secretária e instrumentadora cirúrgica, mas me serve também como inspiração pornológica (levanta a saia da secretária, mostrando cintas-ligas) se é que vocês me entendem. Uma garota muito esforçada. – querida, diga oi para nossos clientes. (a garota responde: oi.). Esse casal são nossos manequins; alguém diria que essas perfeições têm origem suburbana? Treinei-os bastante, foram a congressos, orgias, workshops e até para retiro do Santo Daime que é uma grande capacitação sodomita...

Homem: aquele chá toca o ponto “G” cerebral.

Mulher: que frase horrível!

Dr.: Mês que vem vão ambos para a Europa, ele para um curso de erotização ativa e ela para um curso de erotização passiva. Não é lindo!? Oséas diga oi para nossos clientes. (ele diz: oi.). Carlinha, diga oi para nossos clientes. (ela diz: oi.).

Mulher: são tão educados...

Homem: e gostosos também!

Dr.: bem, mas digam, o que desejam de nós.

Homem: olha doutor, meu caso é simples. O Sr. Sabe que o homem contemporâneo deve se preocupar com o prazer da mulher, que o orgasmo feminino depende disso e foi pensando nela que gostaria que diminuísse a minha curvatura.

Dr.: você que dizer envergadura.

Homem: é. Eu acho ela muito torta.

Dr.: para a direita ou esquerda

Homem: para cima.

Dr.: vocês tem algum tipo de dispareunia?

Mulher: dispa o quê?

Dr.: Dispareunia. significa dor ao coito?

Mulher: absolutamente.

Dr.: deixe-me dar uma olhada...

Homem: (põe naturalmente o pênis para fora) assim não dá para perceber.

Dr.: Carlinha, por favor, me auxilie. (Carla mecanicamente erótica levanta parte do vestido, o homem olha fixamente o decote enquanto o Dr. Examina) Assim está melhor.

Mulher: e aí doutor, é grave. (o dr. continua examinando enquanto o homem olha para a mulher e está quase gozando).

Dr.: (o homem goza na mão do Dr. que a limpa naturalmente com um lenço dado pela secretária). Não, há de fato uma envergadura de aproximadamente 35 graus que podemos reduzir para 10 ou 15.

Homem: que tal 5?

Mulher: que tal 15 graus negativos?

Dr.: reduzir de mais torna o procedimento arriscado e dispersonifica o seu pênis, que tem que ter um pouco das características originais.

Mulher: entendo.

Homem: 15 me parece ótimo!

Mulher: por mim tudo bem.

Dr.: parece que chegamos a um consenso. Podemos começar já, se vocês quiserem.

Mulher: só mais uma coisa...

Dr.: claro. ( o casal se olha).

Homem: ela também quer modificar o corpo.

Dr.: veio ao lugar certo.

Mulher: meu caso é um pouco mais complicado...

Dr. sou todo ouvidos.

Mulher: sempre tive um fascínio grande pelo reino animal, desde a infância, na fazenda dos meus avós, tive uma iniciação sexual muito próxima da natureza, mantive relações com várias espécies animais...

Homem: ela é bióloga.

Dr.: bela profissão, mas, continue...

Mulher: foi então, que trabalhando em uma ONG no litoral observei que as gaivotas tem seu ânus e a vagina unidos em um só orifício...

Homem: chama-se cloaca.

Mulher: então descobri que todas as aves tem cloaca e que os peixes também. Foi quando decidi: eu também quero ter uma cloaca.

Homem: eu a apoiei desde o início.

Mulher: só o senhor pode me ajudar.

Dr.: há alguns anos, no Canadá, fiz um curso de cloacalização e se trata de uma cirurgia um pouco mais complexa. O que você acha disso(pergunta ao homem)?

Homem: enquanto ela não estiver cacarejando para mim está tudo bem.

Mulher: Imagine meu bem, com sua nova envergadura e eu com minha cloaca vamos ter noites intermináveis.

Dr.: Bem, então acho que podemos começar as cirurgias. Damas primeiro.

Pablo Sales*

* Ator, roterista da Companhia dos Anjos Baldios e escritor (Prêmio Braskem de Literatura , 2002).

Um comentário:

Luciano Fraga disse...

Buenas,sempre grandioso o Pablo.É assim os homens querendo fugir,mudar aquilo que realmente ele é. Esquece-se que a mudança maior vem de dentro.